terça-feira, 6 de outubro de 2009

Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

Do livro, Sentimento do Mundo

terça-feira, 29 de setembro de 2009

versinhos

vendo assim tão quietinho
dá uma sensação tão boa
de felicidade fininha ...
de mãozinha quentinha!

essa noite tão fria...
trouxe a saudade
do jeitinho mancinho
de ficar assim bem juntinho!

e que bom seria
ficar de mãos dadas
adentrar a madrugada
enquanto o soninho corria ...ZzzZzz

é desse jeito assim
que me sinto feliz
com toda saudade
e essa tal fê...lícidade!


Eline Barreto.

Do nascimento à vida

desde o nascimento, quando tudo é uma descoberta,
a vida é uma estranha senhora
e as senhoras vão cuidar de seus jardins
com flores vermelhas escuras
e as flores vermelhas escuras vão perfumar
com suas fragrâncias despertadoras
que despertam corações desorientados
escondidas atrás de muros de longínquas estradas
para que o misterioso não continue onde está
e o nascimento surja como o esplendor do renascer
perante vida que não volta mais
diante de mortes que são finais
sentimentos resistem mesmo quase terminais
a vida não pede licença para existir
nem um palmo a menos
nem uma légua se desfaz
segue firme como sempre
com a sensação daquelas corajosas senhoras
que regam os jardins de flores vermelhas escuras
como a mãe de Pavel
como nossa mãe
como a mãe da vida


Cláudio de Souza Mendonça
20.02.2008

No Caminho, com Maiakóvski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de me quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

Eduardo Alves da Costa

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Aprendizado

Ferreira Gullar


Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.



De Barulhos (1980-1987)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

As Megacidades

se têm então estas megacidades,
vêm acompanhadas de suas megaperiferias,
trazendo cedo,
antes de ver o sol,
um exército de mãos, pés e corações
andando pelos labirintos
dos espaços opacos,
dos sinais intrafegáveis
lá se vêm as megacidades

do porto ao lado
vários achados
presos, hospícios, cadeados.
certezas fúteis que tudo encalha
no noticiário
as mesmas cenas
que foram transmitidas ano passado
histórias dos nossos passos largos,
da concentração da produção no luminoso espaço

no corrimão da vida podre
normal para quem vive a rir
do desprezo fato de todos os seres
que cedo madrugam para resistir

na vida toda desde o nascer,
se vê que corre os rios assim
dia de suor, sem pormenores
com as fardas no corpo pronto a partir

lá se vêm de novo as megacidades
com suas construções horizontais
sem palmo dado sem arriscar
a própria vida,
com sussurros aloprados

são mais de 10 milhões de vidas ali estando
com passeatas, desigualdades e homens fingindo
que tudo é uma maravilha

Cláudio de Souza Mendonça
08.10.2007

sábado, 30 de maio de 2009

O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda